
Nos Estados Unidos, um caso recente chocou educadores, especialistas em tecnologia e pais ao redor do mundo. Um adolescente de apenas 15 anos criou, por meio de um software de inteligência artificial, uma cidade virtual completa: com ruas, edifícios, pessoas — inclusive uma namorada digital. A interação era tão intensa e realista que, ao ouvir da personagem criada por IA o convite para “encontrá-la”, o jovem trancou-se no banheiro e cometeu suicídio, acreditando que estaria indo ao seu encontro.
Parece roteiro de ficção científica, mas é a realidade. E casos assim, infelizmente, têm se tornado cada vez mais requentes entre jovens que dominam as ferramentas tecnológicas, mas não têm maturidade emocional para lidar com os efeitos psicológicos desse novo universo. A IA, quando mal compreendida, pode confundir o limite entre o real e o artificial, criando ilusões perigosas — e muitas vezes fatais.
Esse episódio simbólico ilustra o ponto central deste artigo: estamos diante de uma revolução silenciosa, profunda e inevitável — um verdadeiro tsunami digital que já começou a redesenhar todos os aspectos da vida humana. E precisamos, com urgência, debater seus efeitos, riscos e possibilidades.
É cada vez mais evidente: a inteligência artificial veio para ficar — com todas as suas consequências, sejam elas positivas ou negativas. Estamos vivendo uma nova onda de inovação tecnológica sem precedentes. Se a internet nos anos 1980 e as redes sociais na década de 1990 foram comparáveis a grandes enchentes, a IA representa um tsunami avassalador. Seu impacto já se faz sentir da vida pessoal à esfera corporativa, do setor público às instituições democráticas.
E, ainda que muitos tratem essa transformação como algo distante, ela já está sendo registrada — ainda que de forma dispersa — nos inúmeros artigos, estudos e debates que tentam compreender o papel da IA no presente.
Diante desse cenário, trago duas vertentes que considero urgentes e inadiáveis — e que precisam ser enfrentadas tanto pelos governos quanto pela sociedade.
Conviver, aqui, significa muito mais do que simplesmente usar ferramentas tecnológicas. Trata-se de compreender que a IA já está interferindo nas relações de trabalho, no convívio social, na educação, na saúde e na forma como nos comunicamos. Profissões estão sendo extintas, novas estão surgindo e outras serão completamente redefinidas. E, ainda assim, a maioria das pessoas sequer percebe a profundidade dessa transformação.
A IA já está presente nos bancos, nas centrais de atendimento, nos aplicativos de celular, nas redes sociais e nos mecanismos de busca. Ela coleta dados, aprende com o comportamento humano e evolui com base na interação. Se for bem direcionada, pode se tornar uma aliada poderosa no combate à desigualdade, na ampliação do acesso à informação e no avanço da ciência. Mas se negligenciada, pode aprofundar desigualdades, manipular comportamentos e ampliar o controle de poucos sobre muitos.
Mais preocupante: muita gente ainda acredita que discutir IA é algo “opcional” — quando, na verdade, já se tornou essencial. Ignorar esse debate é deixar o futuro nas mãos de uma minoria que detém conhecimento técnico e acesso às ferramentas, enquanto o restante da sociedade permanece alheio, vulnerável e manipulável.
A segunda vertente é o fosso de conhecimento que se aprofunda diariamente entre os que dominam a IA — ou ao menos conhecem seu funcionamento — e os que sequer sabem que estão sendo impactados por ela. Essa lacuna é, provavelmente, o novo marco da exclusão social do século XXI.
Quantos idosos sabem que estão falando com uma máquina ao entrar em contato com o atendimento de seu banco? Quantas pessoas conseguem identificar que um vídeo visto nas redes sociais foi integralmente criado por inteligência artificial — do roteiro ao rosto do “personagem”? A IA já fala, decide, interpreta e influencia, muitas vezes sem que saibamos. E isso ocorre em todos os setores. Da medicina à publicidade, do comércio à educação, da política ao entretenimento. O risco maior está em entregar esse poder a usuários sem preparo — sejam jovens emocionalmente frágeis, criminosos digitais ou grandes corporações com interesses comerciais obscuros.
A inteligência artificial não é, por si só, boa ou má. Ela é o reflexo de quem a programa, de quem a alimenta e de quem a utiliza. E por isso, a resposta à pergunta “IA – tsunami?” é sim — mas ainda temos tempo para decidir como enfrentá- lo.
Precisamos, governos e sociedade, buscar: a democratização do acesso à informação digital, incentivar o pensamento crítico desde as escolas, estimular a criação de políticas públicas inclusivas e regulamentar o uso ético da inteligência artificial, entre tantas outras ações de enfrentamento. É hora de conhecer, debater e agir é agora. A IA já faz parte do nosso cotidiano — visível ou não. E a decisão de navegar juntos ou deixar milhões se afogarem sozinhos é um desafio coletivo que não pode mais ser adiado.
Oscar Soares Martins, consultor e especialista em Cybersegurança e em Inteligência Artificial.