No Brasil, futebol é quase um campeonato à parte da vida, e o gramado, seu palco mais sagrado. Mas, como em todo torneio, há quem entre não para competir, mas para trapacear e, nos últimos anos, investigações têm mostrado que alguns resultados já vêm tabelados antes mesmo do apito inicial
O país assiste, com indignação, a uma sucessão de operações que revelam esquemas de manipulação de resultados — ou match-fixing, no jargão internacional. São tramas que fariam corar roteiristas de série policial: erros “cirurgicamente planejados”, cartões distribuídos como brindes e gols com mais cara de ensaio do que de improviso.
Operações como “Penalidade Máxima” e “Cartão Vermelho”, deflagradas nos estados de Goiás e Mato Grosso do Sul, descortinaram um submundo onde o placar não se decide no talento, mas na malícia. Em alguns casos, atletas recebiam quantias para cometer pênaltis, tomar cartões ou permitir gols em momentos específicos. Em resumo, um cartão amarelo no primeiro tempo, que para o fiel torcedor é um detalhe, para apostadores pode significar milhares de reais.
O debate sobre a manipulação deliberada de resultados ganhou ainda mais evidência em março de 2025, quando o Congresso Nacional apresentou o relatório final da CPI da Manipulação de Jogos. O documento expressou forte preocupação com a expansão desse tipo de fraude no país, recomendou o indiciamento de investigados e sugeriu mudanças legislativas para endurecer as penas e ampliar os mecanismos de fiscalização, reforçando que o enfrentamento ao problema é prioridade tanto no âmbito esportivo quanto no legislativo.
No ordenamento jurídico brasileiro, a manipulação de resultados é tratada com absoluto rigor: a Lei Geral do Esporte (Lei nº 14.597/2023) tipifica a conduta como crime, prevendo pena de reclusão de 2 a 6 anos, além de multa. No âmbito esportivo, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) estabelece suspensão, multas e até exclusão da competição. Ou seja, é como levar um cartão vermelho que vale para o resto da carreira, a exemplo de decisões do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), que já aplicaram suspensões e multas expressivas a atletas envolvidos em manipulação de resultados, demonstrando que a punição também entra em campo com força máxima.
O combate à manipulação de resultados conta com a atuação complementar da justiça comum e da justiça desportiva. A primeira é responsável por investigar, oferecer denúncia e, quando necessário, efetivar as condenações conforme a lei. A segunda, conduzida pelo STJD, atua com celeridade para suspender preventivamente atletas sob suspeita, preservando a integridade e a regularidade da competição.
Os esquemas não escolhem divisão e estão presentes em diferentes campeonatos, seja na Série A, B, C ou até no futebol de base. Onde houver apito, há possibilidade de fraude. Nessa lógica, nem mesmo nomes conhecidos do esporte estão imunes à atuação dos manipuladores.
E o prejuízo não é só no campo. Os patrocinadores recuam, torcedores perdem a confiança e a credibilidade evapora. Afinal, quem investe tempo e dinheiro para assistir futebol semelhante a um teatro com final ensaiado?
No exterior, o combate é igualmente implacável, a FIFA e a Interpol tratam a manipulação como ameaça global, enquanto a UEFA vem aplicando penas exemplares. Um caso recente é o do FK Arsenal Tivat, de Montenegro, banido das competições europeias por dez anos e multado em 500 mil euros após investigação revelar manipulação de resultados na Conference League 2023/24. Houve ainda banimento vitalício ao jogador e ao dirigente envolvidos — uma espécie de cartão vermelho eterno.
No Brasil, o exemplo mais emblemático é a “Operação Penalidade Máxima”, deflagrada pelo Ministério Público de Goiás, em 2023. O inquérito desvendou um esquema que envolvia jogadores recebendo pagamentos para manipular eventos de jogos, como cartões e pênaltis. Em recente decisão, a Justiça condenou três envolvidos, marcando a primeira sentença criminal de manipulação de resultados no país. Como dizem nas arquibancadas, “quem marca jogo sujo, acaba marcado pela justiça”.
Esses dois exemplos mostram que a trapaça não conhece fronteiras — mas também que, do Brasil a Montenegro, a conta sempre chega.
O mercado de apostas, especialmente o online, é hoje um dos maiores desafios para a integridade esportiva, movimentando bilhões e oferecendo, com tantos jogos e eventos disponíveis, brechas que criminosos exploram para lucrar. Ao mesmo tempo, a tecnologia atua a favor da fiscalização, por meio de sistemas capazes de monitorar padrões suspeitos e alertar as autoridades
Ainda assim, a prevenção é tão importante quanto a punição, sendo essencial educar atletas desde as categorias de base para que reconheçam propostas suspeitas, compreendam as consequências e saibam como denunciar. Enquanto isso, o torcedor também desempenha papel relevante, utilizando canais de denúncia mantidos pelas federações e pela própria Polícia para comunicar suspeitas de forma anônima e segura, exercendo pressão por transparência e punições rigorosas que ajudam a manter o jogo limpo.
Para o atleta, a escolha é simples: aceitar entrar nesse esquema é apostar a própria carreira… e perder. É certo que, para os dirigentes, a omissão também pode custar caro, tanto financeiramente quanto na reputação.
Manipular resultado é como marcar gol contra: prejudica seu time e alegra o adversário errado. A diferença é que, nesse jogo, o adversário veste terno e contabiliza lucros.
Por fim, a parceria entre Polícia, Ministério Público e o STJD é o verdadeiro meio de campo que pode virar esse jogo. Um pune no esporte, o outro pune na Justiça comum — e, juntos, marcam pressão alta contra os manipuladores.
Seja no Brasil ou no futebol mundial, o recado é claro: quem joga sujo, mais cedo ou mais tarde, acaba no banco — o dos réus. No fim das contas, o que o torcedor quer é simples: ver a rede balançar de forma limpa, e não por um chute combinado nos bastidores.
* Gustavo Lisboa, Advogado e Procurador do STJD do Futebol.