Acompanhe nossas noticias

The news is by your side.

O ‘sentimos muito’, mas não tanto, de Paris 2024, sobre a ‘Última Ceia’ das drags

0

(Felipe Moura Brasil, publicado no portal O Antagonista em 28 de julho de 2024)

 

A porta-voz de Paris 2024, Anne Descamps, comentou em coletiva de imprensa realizada neste domingo, 28 de julho, a avalanche de críticas no mundo inteiro ao quadro kitsch da cerimônia de abertura das Olimpíadas em que a passagem bíblica da Última Ceia de Jesus Cristo e seus apóstolos, eternizada em pintura de Leonardo da Vinci, foi reconstituída com a participação de drag queens, um cantor como o deus grego do vinho, Dionísio, e uma criança.

“Claramente, nunca houve a intenção de mostrar desrespeito a qualquer grupo religioso. [A cerimônia de abertura] tentou celebrar a tolerância da comunidade”, disse a porta-voz.

“Acreditamos que essa ambição foi alcançada. Se as pessoas se ofenderam, nós realmente sentimos muito.”

Alguns veículos, como o jornal britânico The Guardian, noticiaram essa declaração como um pedido de desculpas dos organizadores dos Jogos Olímpicos a católicos e outros grupos cristãos, mas a alegação de sentir muito, condicionada a um suposto desagrado alheio com o ato cometido, não configura pedido de desculpas em caso algum, que dirá quando o desagrado já está mundialmente consumado em numerosas reações.

O que os organizadores alegaram pela porta-voz foi que sentem muito que haja gente que não tenha entendido suas boas intenções (de “celebrar a tolerância da comunidade”, sem “mostrar desrespeito a qualquer grupo religioso”). Pela retórica deles (de que “essa ambição foi alcançada”, a despeito das pessoas que “se ofenderam”), não foi Paris 2024 que errou, foram católicos e outros grupos cristãos – incluindo políticos com discurso conservador e atletas – que não entenderam.

Nem o líder da extrema-esquerda francesa, no entanto, endossou a reconstituição do quadro. “Não gostei da zombaria da Última Ceia cristã”, escreveu Jean-Luc Mélenchon, do partido França Insubmissa, em seu blog. “É claro que não estou entrando na crítica da ‘blasfêmia’. Isso não diz respeito a todos. Mas pergunto: qual é o sentido de arriscar ferir os crentes? Mesmo quando você é anticlerical! Estávamos falando ao mundo naquela noite.”

Questionado neste domingo, o diretor artístico da cerimônia, Thomas Jolly, alegou à BFMTV que a Última Ceia “não é minha inspiração”.

“Há Dionísio (Philippe Katerine pintado de azul) que chega nesta mesa. Ele está lá porque é o deus da celebração na mitologia grega. O deus do vinho, que é uma das joias da França. E pai de Sequana, a deusa que está ligada ao rio, o Sena. A ideia era fazer uma festa pagã ligada aos deuses do Olimpo. Você nunca encontrará em mim uma vontade de zombar e denegrir qualquer um. Queria fazer uma cerimônia que repare, que reconcilie. E também que reafirme os valores da nossa República, liberdade-igualdade-fraternidade”, disse Jolly.

Em entrevistas anteriores à abertura, ele já havia falado sobre ser LGBTQ (seu namorado também se chama Thomas), de modo que, no sábado (27), alegou também em coletiva:

“Na França, temos o direito de nos amar, como quisermos, com quem quisermos. Na França, temos o direito de acreditar e de não acreditar. Na França, temos muitos direitos.”

Um desses direitos, exercidos no mundo democrático, dentro e fora da França, inclusive neste caso, é o de criticar qualquer manifestação que, mesmo sendo legalmente permitida, soa inadequada para a circunstância específica, ofensiva a segmentos da população e/ou desnecessária no momento mundial.

“Os valores e os princípios expressos e disseminados pelo esporte e pelo olimpismo contribuem para essa necessidade de unidade e fraternidade que nosso mundo tanto precisa, respeitando as convicções de todos, em torno do esporte que nos une e a fim de promover a paz entre nações e corações”, declarou, por exemplo, a Conferência Episcopal Francesa (CEF) em 27 de julho.

“A cerimônia de abertura”, segundo ela, “ofereceu ao mundo momentos maravilhosos de beleza, alegria, emoções ricas e aclamação universal”, mas “incluiu cenas de escárnio e zombaria do cristianismo, que deploramos profundamente”.

“Pensamos em todos os cristãos em todo o mundo que foram feridos pelo excesso e provocação de certas cenas. Esperamos que eles entendam que a celebração olímpica se estende muito além dos preconceitos ideológicos de alguns artistas”, completaram os bispos franceses.

O secretário-geral do CEF, padre Hugues de Woillemont, destacou no X a contradição entre “a inclusão exibida e a exclusão real de certos crentes”. “É desnecessário ferir as consciências para promover a fraternidade e a irmandade”, resumiu.

O arcebispo de Malta, Charles Scicluna, que conduziu investigações de abuso sexual por parte do clero e liderou um comitê do Vaticano sobre esses casos, entrou em contato com o embaixador da França na capital do país, Valletta, para manifestar “grande decepção” diante do “insulto gratuito” a “nós, cristãos”.

O arcebispo italiano Vincenzo Paglia, presidente da Pontifícia Academia para a Vida, do Vaticano, escreveu no X que “a zombaria” da Última Ceia “revela uma questão profunda”: “Todos, absolutamente todos, querem se sentar à mesa onde Jesus dá sua vida por todos e ensina amor.”

Para a Conferência Episcopal Italiana, a cerimônia “concebida para celebrar a grandeza da França e a unidade do movimento olímpico tomou um rumo inesperadamente negativo, tornando-se um desfile de erros banais, acompanhados por ideologias triviais e previsíveis”.

Um artigo no Avvenire, o jornal diário italiano afiliado à Igreja Católica, ponderou: “Não nos tome por fanáticos moralistas, mas de que adianta ter que experimentar cada evento global, mesmo um esportivo, como se fosse um Orgulho Gay?”

A parlamentar francesa Marion Maréchal, católica, mandou recado no X para os cristãos que “se sentiram insultados por esta paródia de drag queen da Última Ceia”: “saibam que não é a França que está falando, mas uma minoria de esquerda pronta para qualquer provocação”.

O fato de que a “provocação” tenha sido feita com um símbolo do cristianismo, que tolera a blasfêmia, e não do Islã radical, que reagiu às sátiras do profeta Maomé com o massacre do Charlie Hebdo, ainda turbinou críticas à “covardia” dos organizadores da cerimônia.

Mas, para além do grau de sensibilidade de cada grupo, a questão de fundo é incontornável.

Como eu, Felipe, comentei no X, no dia 26:

“Abertura de Olimpíadas, sobretudo em tempos de guerra, deveria ser cerimônia de união de países, povos e culturas, usando elementos da sede para tratar de valores universais da civilização. Não espaço de reinvenção de símbolos religiosos em perfomances lacradoras e divisionistas.”

O maior evento de união do mundo desuniu, porque o espírito olímpico foi corroído pela militância identitária, incapaz de conceber ou de respeitar a diversidade que ela própria propagandeia.

Deixe uma resposta

Seu endereço de email não será publicado.

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumiremos que você está ok com isso, mas você pode cancelar se desejar. Aceitarconsulte Mais informação