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O santo de fuzil na mão

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Pepe Mujica morreu. Com ele, nasce um mito – não o da austeridade, que já era parte do folclore progressista latino-americano, mas o da absolvição retroativa de crimes sob a égide de boas intenções. Os obituários exaltam seu casaco puído, sua casa modesta e seu fusca descascado. O que não descasca, curiosamente, é a memória seletiva: Mujica, o presidente “mais pobre do mundo”, foi também um dos líderes do grupo terrorista Tupamaros, responsável por sequestros, assassinatos, assaltos a bancos e roubos de empresas.

Para os que hoje o tratam como uma espécie de São Francisco do socialismo rural, vale recordar que os Tupamaros não eram um grupo de escoteiros politizados. Eram guerrilheiros. Em sua tentativa de instalar no Uruguai um regime socialista revolucionário, adotaram a violência como método e a ruptura institucional como objetivo. Mujica participou de diversas ações armadas, foi preso quatro vezes, fugiu duas e acumulou 14 anos de cadeia, boa parte deles em condições duríssimas — algo que seus admiradores mencionam com reverência, mas jamais com exame crítico das causas que o levaram até ali.

O curioso — ou revelador — é que Mujica jamais se disse arrependido. Em entrevistas, relativizou os atos de violência, atribuindo-os a um “contexto histórico” que, ao que parece, absolve qualquer delito desde que a utopia sonhada seja suficientemente lírica. Matava-se por uma causa, e isso, aos olhos da intelligentsia latino-americana, parece tornar tudo legítimo. O mesmo raciocínio não se aplica, é claro, aos militares ou à direita armada de qualquer natureza. O monopólio da violência redentora é da esquerda.

Em El Pepe, una vida suprema (2018), documentário dirigido por Emir Kusturica, Mujica chega a narrar com certo brilho nos olhos a sensação de entrar armado em um banco com um revólver .45. Fala disso não como trauma ou erro de juventude, mas quase como um rito de passagem. O velho ex-guerrilheiro não demonstra remorso, apenas nostalgia – e isso, por alguma razão inexplicável, virou charme.

Não surpreenderia que Mujica siga, agora postumamente, a trajetória simbólica de Ernesto Che Guevara — outro guerrilheiro que também matou em nome do bem e, por isso, virou estampa de camiseta. Ambos compartilham o perfil idealizado do “rebelde com causa” e, mais importante, da indulgência histórica. Che foi um executor frio e confesso. Mujica, um operador armado que nunca pediu perdão. Mas isso pouco importa quando o que conta é a narrativa, não os fatos. As esquerdas latino-americanas são exímias em amputar a memória: lembram-se das flores, esquecem os tiros.

Durante sua presidência (2010–2015), Mujica promoveu pautas progressistas — legalização da maconha, casamento entre pessoas do mesmo sexo, aborto — que lhe renderam aplausos internacionais. O que poucos observam é que seu legado econômico é medíocre. A dependência do Estado cresceu, o setor público incha até hoje com o peso das promessas fáceis, e o Uruguai continua com um dos maiores níveis de gastos públicos per capita da região. Mas isso não cabe nos necrológios de louvor. Afinal, que importância tem o desempenho fiscal diante de um presidente que anda de chinelos?

Há algo profundamente infantil na forma como parte da opinião pública e da mídia escolhe seus heróis. Mujica encarna a fantasia do revolucionário transformado em sábio: alguém que desceu da montanha (ou da cela) com respostas para a vida em sociedade. Que ele tenha feito isso sem jamais condenar os métodos violentos de sua juventude é, para muitos, apenas um detalhe — como se a ética do homem público pudesse prescindir de coerência moral.

Não bastasse isso, Mujica manteve, até o fim da vida, relações calorosas com ditadores do continente. Foi amigo pessoal de Fidel Castro, a quem jamais criticou pelas décadas de repressão em Cuba. Tratou Hugo Chávez com reverência, mesmo diante da evidente ruína institucional da Venezuela. E saudava Nicolás Maduro com benevolência, enquanto a democracia naquele país era triturada entre fraudes eleitorais e censura. Para um homem que se dizia democrata, a escolha de amigos é reveladora. A liberdade de expressão que usufruía no Uruguai parecia não valer para os povos que sofriam sob os regimes de seus camaradas ideológicos.

No Brasil, alguns compararam Mujica a Ulysses Guimarães. Ofensa ao velho Ulysses, que enfrentou uma ditadura sem lançar mão de um revólver. Outros o trataram como modelo de humildade republicana. Mas há diferença entre humildade e populismo de vitrine. Mujica fez de sua modéstia um espetáculo. Sua aura de simplicidade servia, paradoxalmente, para encobrir sua complexa rede de contradições ideológicas e silenciosas cumplicidades históricas.

Nem mesmo a tão propalada integridade de Mujica sobrevive a uma análise rigorosa. Em 2016, uma comissão parlamentar investigou contratos do governo uruguaio com a empreiteira brasileira OAS, envolvida em diversos escândalos da Lava Jato. A obra de uma usina de regaseificação contratada por seu governo terminou em prejuízo milionário, e documentos brasileiros indicavam pagamento de propina. Soma-se a isso o colapso financeiro da estatal ANCAP, que, sob sua administração, gerou perdas bilionárias e exigiu capitalização de emergência pelo Parlamento. As investigações não resultaram em condenação direta, mas corroeram a narrativa de pureza administrativa. Sua imagem ética, construída com frases de efeito e gestos teatrais, começou a ruir sob o peso das planilhas.

José Mujica não foi um monge — foi um militante que trocou o fuzil pela retórica, sem nunca ter abandonado a lógica de que os fins justificam os meios. Sua morte merece reflexão, não idolatria. Se quisermos honrar de fato a democracia, talvez devêssemos começar por deixar de romantizar aqueles que tentaram destruí-la à bala — mesmo que, no fim da vida, tenham aprendido a esquecer o próprio lado sombrio.

 

André Burger é economista e conselheiro superior do Instituto Liberal.

*Publicado originalmente no Instituto Liberal

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