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O Judiciário e a academia unidos em um projeto orwelliano de poder

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A leitura do noticiário nos transmite a constante impressão de que os tribunais superiores estão determinados a governar o país – e não me refiro a atos de governo como gestão da coisa pública, o que já seria estranho à sua atividade judicante, mas a um projeto sistemático de controle das nossas mentes e das nossas vontades. Seja pela anulação de processos contra criminosos notórios, seja pela criação de inquéritos de ofício por “crimes de opinião”, seja ainda pela definição de políticas públicas a serem implementadas, nossa cúpula togada assume um expressivo protagonismo nas nossas escolhas, passando a definir o que devemos considerar democrático ou autoritário, e até o que devemos enaltecer e execrar.

Em matéria veiculada na mídia como um louvável combate à desinformação, li que o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou, no mês passado, um termo de cooperação com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e outras 33 entidades para “combater práticas que afetam a confiança das pessoas na justiça e colocam em risco direitos fundamentais e a estabilidade democrática.” Assim, o Programa de Combate à Desinformação (PCD) do STF, criado ainda em 2021, acaba de ganhar a adesão de 14 universidades públicas, associações de classe e de uma startup nascida no ambiente universitário, às quais caberão tarefas um tanto nebulosas como “a adequação da linguagem na transmissão de informações, de acordo com a realidade de diferentes interlocutores e mídia” . Em apresentação no Supremo, o representante da startup esclareceu o escopo de seu trabalho, que consistirá em “capturar, pela ferramenta TORS – Tecnologia de Otimização de Redes Sociais informações de interesse do STF nas redes sociais, por palavras-chave, nomes dos ministros, (…) verificar se um certo post, sob a perspectiva do STF, é positivo, negativo ou neutro, e (…) permitir ao STF tomar as medidas cabíveis para o combate à desinformação .”

A primeira indagação a ser colocada diz respeito aos custos incorridos com essa iniciativa empreendida por tribunais estatais e por instituições públicas de ensino. No entanto, nem os veículos de mídia nem a página oficial do STF sobre o tal PCD se preocuparam em divulgar as cifras torradas, em uma falta de transparência característica daqueles que enxergam os cidadãos como meras fontes de arrecadação e massa votante.

Em seguida, cumpre ter em mente que todos os atores envolvidos nesse enredo são entes públicos, cujas funções institucionais são definidas na Constituição Federal (CF), no Código Eleitoral (Lei no. 4737/65), nos regimentos internos dos tribunais e nos estatutos das universidades, não cabendo aos representantes dos aludidos órgãos gastar tempo e recursos públicos em matérias estranhas às atividades que lhes incumbem. De fato, as inúmeras competências atribuídas ao STF nem de longe compreendem o combate às fake news, seja lá o que isso signifique, tampouco figurando essa cruzada contra a suposta desinformação entre as funções do TSE .

No âmbito das universidades, espaços destinados, pelo menos em tese, à disseminação irrestrita de conhecimento, ideias, informações e opiniões, é intuitivo que os estatutos das instituições acadêmicas do século XXI não contemplam, em seu objeto, as condutas restritivas e censoras inerentes à dita prevenção ou repressão a notícias falsas. Um bom exemplo consiste no próprio estatuto da Universidade de São Paulo (USP), uma das parceiras dos tribunais nos esforços ora discutidos, e cujo artigo 2º estabelece como seus fins: “I – promover e desenvolver todas as formas de conhecimento, por meio do ensino e da pesquisa; II – ministrar o ensino superior visando à formação de pessoas capacitadas ao exercício da investigação e do magistério em todas as áreas do conhecimento, bem como à qualificação para as atividades profissionais; III – estender à sociedade serviços indissociáveis das atividades de ensino e de pesquisa”… Aliás, chega a soar irônico o artigo 3º do mesmo estatuto, ao consagrar como espinha-dorsal das atividades uspianas o princípio da liberdade de expressão, embora a universidade tenha acabado de ingressar em uma parceria que visa ao extremo oposto, ou seja, aniquilar a livre manifestação de opiniões.

Colaborações entre tribunais e núcleos de ensino e pesquisa costumam ser muito salutares quando firmadas dentro de um escopo acadêmico, pois o acesso dos aplicadores das normas a dados, estatísticas e investigações pode contribuir para uma melhoria na qualidade das decisões, tornando-as respostas mais fiéis às expectativas dos litigantes. Porém, a recente parceria não se destina ao intercâmbio de informações científicas, pois não busca qualquer pesquisa de fatos a serem testados por métodos empíricos, com vistas à formulação de hipóteses para algum fenômeno. O que está em jogo, aqui, é uma investigação sim, mas de comunicados “desfavoráveis” às autoridades e de seus respectivos autores, para que estes possam ser sujeitos às penas determinadas a critério do desejo dos togados!

Ora, nesse contexto, que espaço sobra para a autonomia acadêmica, consagrada pela própria Constituição que as supremas togas deveriam guardar? Quais serão as perspectivas para docentes ou alunos das instituições parceiras que, mediante o emprego de seu raciocínio, ousarem destoar da manada e enxergarem alguma dose de verdade ou verossimilhança em notícias ou informações que, pela voz de mando, tiverem de ser rotuladas a priori como falsas?

No filme Os Deuses Malditos , cuja trama se inicia com o incêndio do parlamento Alemão em 1933, o diretor Luchino Visconti nos apresenta, como um dos marcos da ascensão do nazismo, a proibição e a queima, pela universidade, de livros reprovados pelas autoridades acadêmicas. Afinal, nomes como Marcel Proust e André Gide seriam perigosos veículos de desinformação, vindo a poluir as mentes dos jovens com uma sensibilidade efeminada contrária aos ideais de virilidade do novo império germânico em formação. Por isso, como de hábito em ditaduras, a academia, metamorfoseada de instituição de ensino em longa manus do poder, cuidou servilmente de expurgar diversas obras e, com elas, informações tidas como “indesejáveis”.

Já no clássico 1984, George Orwell descreve, em sua distopia, uma estrutura mais simplificada de poder totalitário, com o Big Brother ao centro, e, ao seu redor, os ministérios, dentre os quais o Ministério da Verdade. Para mostrar diariamente ao povo a infalibilidade do líder, a função do Ministério da Verdade consistia em fabricar mentiras, “corrigindo” todas as publicações ao sabor dos critérios e interesses do Grande Irmão, e, assim, distorcendo o presente para eliminar o passado – a ponto de deixar os habitantes sem referências sobre o que havia de fato ocorrido anteriormente, incapacitando-os, assim, de formular qualquer contestação contra sua situação presente.

Como seu instrumental mais eficaz, aquela estrutura se valia de uma verdadeira revolução linguística, com a abolição de sinônimos e de adjetivos, em uma objetivização do idioma que impedia as pessoas de conceberem as ambiguidades e as gradações nos sentidos das palavras. Quanto mais simples fosse o espectro semântico, menor seria a capacidade de reflexão do indivíduo e mais fácil seria a aceitação de qualquer forma de dominação, por mais abjeta. Alguma semelhança com a “simplificação e adaptação da comunicação” tão almejada pela parceria em análise?

Se, como dizem, a vida imita a arte, certamente estamos nos dirigindo a cenários descritos por artistas consagrados como extremamente restritivos às liberdades fundamentais. É esse mesmo o nosso desejo enquanto sociedade?

 

Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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