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A juíza e a nossa bandeira

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Assim como os vírus, que infectam e parasitam o corpo do hospedeiro para assegurarem a própria sobrevivência, o autoritarismo judicial tem se espraiado por diversas jurisdições, da cúpula às instâncias superiores, do Planalto Central aos rincões, em visível ânsia de reafirmar o poder de mando das autoridades togadas, detentoras da palavra final entre nós, e não apenas no universo dos litígios. Na mesma semana em que representantes de alguns pré-candidatos ao Executivo Federal se encontraram com uma suprema toga para discutirem possíveis medidas contra atos políticos violentos[1], quase como monarcas do passado, que buscavam apoio junto ao papa para derrotarem dinastias rivais, tomamos conhecimento de mais uma decisão um tanto pitoresca.

A notícia que chega do interior do Rio Grande do Sul aponta uma reviravolta na jurisprudência eleitoral. A partir de agosto, pelo menos em parte do Estado sulista, o uso da bandeira nacional poderá gerar multa, pois, no entendimento da juíza eleitoral Ana Lúcia Martinez, o emprego do símbolo em local fixo configuraria propaganda eleitoral irregular “para um dos lados”, sem qualquer menção, por parte da magistrada, ao “lado” em questão[2].

A essa altura, você, leitor estarrecido diante de determinação tão inusitada, deve estar curioso sobre as normas da nossa legislação que vedariam a utilização da bandeira em campanhas políticas. Afinal, nem é necessária familiaridade com o Direito para intuir que cidadãos só possam ser impedidos de praticarem algum ato por força de lei expressa neste sentido.

Porém, como o Brasil não é para iniciantes, julgadores como a magistrada gaúcha em questão baseiam suas decisões muito mais em seus desejos e crenças que em uma fundamentação jurídica minimamente sólida. De fato, se a juíza tivesse consultado o Código Eleitoral, teria observado que o legislador veda a propaganda eleitoral por meio de mensagens belicosas, capazes de gerar animosidade, perturbação ao sossego, ou danos à higiene ou à honra alheias[3], mas não tolhe o uso da bandeira nacional. Tampouco teria a juíza encontrado amparo na Lei 9504/97[4] que, dispondo sobre normas eleitorais, autoriza o uso de bandeiras em vias públicas, desde que móveis e insuscetíveis de ocasionar transtornos ao trânsito.

Portanto, ao vedar a utilização do símbolo, a togada legislou, talvez inspirada em casos rumorosos protagonizados por tantos superiores hierárquicos seus, e que vêm sendo tratados amiúde neste espaço.

Por fim, cumpre frisar o equívoco grosseiro da principal premissa da julgadora, segundo a qual a bandeira nacional teria se tornado “marca de um lado da política no país”[5]. Ainda que a atuação da magistrada se restrinja à esfera eleitoral, presume-se que o juiz conheça o Direito e os princípios elementares dos seus mais diversos ramos. No entanto, a togada não parece muito versada nas ciências jurídicas, pois, se o fosse, teria pleno conhecimento da impossibilidade de obtenção de registro, como marca, de brasões, armas, bandeiras, ou distintivos oficiais, conforme disposição literal da Lei de Propriedade Industrial (Lei no. 9279/96)[6].

Ora, se não é dado, a quem quer que seja, reivindicar o direito ao uso exclusivo da bandeira nacional, como veio a julgadora a incorrer na falácia de que um símbolo intrinsecamente coletivo pudesse ser apropriado por algum ente privado, como, por exemplo, um partido ou um grupo político? E, o que é ainda mais grave, como pode a magistrada impedir o uso de um bem insuscetível de apropriação privada, no intuito de evitar os efeitos da violência decorrente da atual polarização política?

Em trecho de sua magistral obra Paz e Guerra entre as Nações, o pensador Raymond Aron examina as origens psicológicas e sociais das guerras e atos violentos praticados por nós seres humanos, animais combativos entre os primatas, movidos por pulsões e ambivalências de sentimentos, e que não confrontamos uns aos outros por instinto, e sim como resposta às nossas próprias frustrações. Como assinalado por Aron, até as sociedades modernas são palco de conflitos violentos que, segundo a motivação, podem passar de condutas delitivas no plano criminal a insurreições exitosas, capazes até de inverterem a ordem social e os parâmetros de legalidade.

Ainda nos parágrafos relativos à violência no interior das unidades políticas (nações), Aron acentua que a resolução normal de conflitos entre grupos rivais, ou seja, sem recurso à violência, não significa que as inimizades sejam raras. Significa, antes, que, naquela comunidade, as relações humanas são submetidas a normas, que todos reconhecem as autoridades legitimadas a dirimirem tais litígios, que há uma certa noção de solidariedade entre os concidadãos, apesar das diferenças, e que os indivíduos contam com forças superiores efetivas, tais como exército ou polícia, em caso de necessidade. São essas algumas das condições para a chamada paz civil, que, segundo Aron, pode vir a esfacelar-se com facilidade, na ausência de qualquer dos requisitos acima.

Como esses ensinamentos ecoam nos corações inquietos de todos nós, cidadãos de um país assolado tanto pela violência urbana quanto pela política, e marcado pela frágil institucionalização dos conflitos. No caso em discussão, a esdrúxula proibição de uso do símbolo nacional deixará os diretórios gaúchos dos partidos políticos inseguros sobre imprimirem ou não materiais de divulgação exibindo a bandeira, o que poderá implicar até desperdícios e custos adicionais, arcados, em sua imensa maioria, pelo pagador de impostos via mecanismos de financiamento público de campanhas.

Como se não bastassem as dúvidas para os jurisdicionados, a saber, para os partidos e seus candidatos, a magistrada, em vez de ter encerrado a pendenga na sua jurisdição, ainda deu ensejo à necessidade de atuação do Tribunal Regional Eleitoral de sua região, que deverá reexaminar o caso em breve, e talvez até ao futuro envolvimento dos tribunais superiores no assunto. Em outras palavras, mais gastos públicos com matérias irrelevantes, risco de decisões conflitantes e perspectiva de guerras de decisões monocráticas proferidas país afora, com a geração de narrativas midiáticas de toda a espécie e agudização da já nociva polarização, E lá seguimos nós, em meio à tormenta das incertezas!

[1] https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADtica/representantes-de-tebet-e-lula-se-re%C3%BAnem-com-moraes-para-discutir-viol%C3%AAncia-1.855674

[2] https://www.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2022/juiza-do-rs-entende-que-bandeira-do-brasil-e-propaganda-eleitoral-para-um-dos-lados/

[3] Artigo 243 da Lei 4737/65

[4] Artigo 37: (…) § 2º – Não é permitida a veiculação de material de propaganda eleitoral em bens públicos ou particulares, exceto de: I – bandeiras ao longo de vias públicas, desde que móveis e que não dificultem o bom andamento do trânsito de pessoas e veículos

[5] https://veja.abril.com.br/coluna/radar/juiza-eleitoral-diz-que-bandeira-do-brasil-virou-simbolo-de-bolsonaro/

[6] Art. 124. Não são registráveis como marca:   I – brasão, armas, medalha, bandeira, emblema, distintivo e monumento oficiais, públicos, nacionais, estrangeiros ou internacionais, bem como a respectiva designação, figura ou imitação

 

Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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