Textos que tratem da liberdade de opinião parecem dispensáveis diante da crença de que esse valor estaria consolidado no Ocidente.
Em Sobre a Liberdade, John Stuart Mill, inicia o capítulo intitulado “Da Liberdade de Pensamento e Discussão” afirmando que é de se esperar que não seria mais necessário discorrer sobre os males associados ao controle governamental de idéias. Também na Inglaterra, na mesma época, Herbert Spencer declara em O Direito ao Livre Discurso que seria supérfluo repetir o Areopagítica, o panfleto que John Milton escreveu em 1644 para defender o fim do sistema de licenças para publicações.
A mesma crença é comum em nossa própria época. Afinal, a adesão à liberdade de expressão ainda exige de seus oponentes, como um tributo, a afirmação de que eles seriam “favoráveis à liberdade de opinião” antes do fatídico “mas”, que invariavelmente se segue e esvazia tal declaração.
Ademais, o anseio pelo controle do pensamento sempre existiu, em especial entre alguns intelectuais, movimentos políticos e grupos religiosos. Porém, quando a defesa da censura extrapola esses círculos e contamina o resto da sociedade, devemos nos preocupar seriamente com a sinceridade do compromisso com esse valor.
O cenário atual
Na academia, no jornalismo, nas grandes empresas e nas redes sociais tornou-se natural censurar e pedir a demissão de pessoas que ousam contrariar determinadas opiniões ou mesmo violar o código de termos permitidos por aqueles que buscam controlar a linguagem e instrumentalizar o ensino.
Quem questiona algum dogma presente é visto como ignorante ou imoral, um criminoso que espalha falsidade e ódio entre aqueles tidos como menos capazes de pensar por si próprios.
Esse paternalismo, por sua vez, suscita o clamor por controle estatal do fluxo de informação, sem que sejam expressos temores significativos a respeito da vontade e da capacidade que autoridades responsáveis pelo controle teriam para separar a verdade da falsidade. Ao mesmo tempo, o debate racional é novamente substituído pela mais tosca das falácias, que dispensa a análise do conteúdo das idéias em favor do ataque aos seus autores, bastando que esses sejam “denunciados” como membros de alguma classe imaginária de inimigos.
Além da censura, também a defesa da agressão física se torna cada vez mais comum nesse ambiente não acostumado com a multiplicidade de pontos de vista. Pessoas com mentalidade autoritária rotulam de “fascistas” e “nazistas” quaisquer opiniões diferentes das próprias; e os oponentes intelectuais, assim desumanizados, são vistos como ameaças à civilização, devendo ser combatidos pela força física.
Recorrendo a Mill
Cada um desses fenômenos assustadoramente retoma práticas comuns em regimes autoritários, o que faz com que o clima político e intelectual moderno lembre as ficções distópicas de autores como Zamyatin (Nós) e Orwell (1984) e os modernos censores “politicamente corretos” pareçam tragicomicamente com inquisidores moralistas de tempos mais remotos.
Diante do presente grau de deterioração do compromisso com a liberdade, são cada vez mais necessárias re-exposições dos fundamentos da liberdade de expressão. Neste artigo, reproduziremos, com comentários relativos ao cenário atual, os argumentos de J. S. Mill contidos no segundo capítulo de Sobre a Liberdade. Essa escolha foi feita tendo em vista o caráter sistemático da argumentação desse autor e ao fato de que ele identifica com sucesso o cerne da questão.
Iniciemos destacando algumas conclusões do texto de Mill, especialmente relevantes para o nosso tempo:
i) sendo o conhecimento falível, o aprendizado ocorre de forma descentralizada, por tentativas e erros, sendo a liberdade condição necessária para tal;
ii) a censura tem sempre como origem a presunção de superioridade intelectual ou moral e é historicamente demandada não por vilões, mas por pessoas que se consideram esclarecidas;
iii) mesmo se fosse possível estabelecer com certeza que uma opinião é falsa, isso não justifica sua supressão;
iv) o duplo padrão aplicado ao julgamento de opiniões majoritárias e minoritárias induz a autocensura, que constitui um dos piores inibidores do progresso.
Mill contempla em sua argumentação três possibilidades: uma opinião que se pretende calar pode ser verdadeira, conter elementos de verdade ou ainda ser completamente falsa. No primeiro caso, a censura evidentemente rouba da humanidade os benefícios que seriam gerados pela verdade suprimida. Menos óbvio é a capacidade de identificar a verdade de forma inequívoca. Essa é a ocasião para identificarmos os elementos responsáveis pelo progresso do conhecimento no texto de Mill.
O autor parte de bases falibilistas, isto é, da idéia de que proposições podem ser verdadeiras ou falsas, mas não temos condições de estabelecer sua veracidade de forma inequívoca. Em especial no que diz respeito aos assuntos polêmicos, nas palavras de Mill, “nunca podemos ter certeza de que seja falsa a opinião a qual tentamos sufocar”.
Encontramos no texto desse autor os dois elementos centrais de uma teoria falibilista sobre o crescimento do conhecimento: pluralismo e crítica.
Quando o conhecimento for limitado diante da complexidade do mundo, o aprendizado ocorre se houver simultaneamente liberdade para expor soluções diferentes para os problemas e disposição a examinar criticamente essas soluções.
O papel da crítica
Considere em primeiro lugar o papel da crítica. Para Mill, “toda a força e todo o valor do julgamento humano dependem … de uma única propriedade – de que este pode ser corrigido quando errado”. As duas fontes de identificação de erro apontadas pelo autor são a discussão racional e a experiência empírica, que por sua vez dependem da disposição a escutar objeções que possam ser feitas a qualquer explanação que gostamos.
Como a disposição a escutar hoje é mais ameaçada pela falta de discussão, destacaremos esse primeiro fator. É cada vez mais comum encontrarmos pessoas que nutrem a ilusão de que suas próprias opiniões seriam embasadas em evidências empíricas enquanto as dos demais derivariam de mera ideologia. Para aqueles que enxergam um potencial terraplanista em toda pessoa com opiniões diferentes, a leitura do capítulo de Mill é bastante útil.
Mill observa que, para que fatos e raciocínios realizem seu trabalho de correção de erros, é necessário antes que os mesmos sejam apresentados. Nos termos do modelo de aprendizado aludido acima, não faz sentido falar em correção de erros sem que se conheçam os candidatos à solução dos problemas, que fornecem o material para que dados sejam interpretados.
Conforme cresce a complexidade do assunto estudado, além disso, aumenta o número de explanações antagônicas compatíveis com o mesmo conjunto de dados e em particular nos assuntos relativos à política e sociedade, parte considerável do trabalho intelectual envolve a crítica de teorias rivais.
Furtar-se da tarefa de se familiarizar com as diferentes explicações seria portanto postura incompatível com o progresso do conhecimento. Nas palavras de Mill:
“O homem que conhece apenas o seu lado da questão não sabe muita coisa. Suas razões podem ser boas, e é possível que ninguém seja capaz de refutá-las. Mas se for igualmente incapaz de refutar as razões do lado contrário, se não estiver em condições de saber o que são, não possui fundamentos para preferir uma opinião à outra.”
Para que se leve a sério a tarefa proposta, evitando distorções fáceis, não bastaria ainda conhecer uma teoria rival a partir das descrições apresentadas por adversários, sendo necessária a leitura dos argumentos formulados por seus melhores defensores. Com efeito, nas discussões modernas na internet, dificilmente os debatedores passariam no teste que os convidaria a expor um esboço das teorias que rejeitam com tanta confiança.
Mesmo entre pesquisadores profissionais, a pretensão do conhecimento gerada por crenças metodológicas não-falibilistas resulta em dogmatismo, como mostrou Hayek em sua Contrarrevolução da Ciência. Para Mill, do mesmo modo, “a tendência fatal dos homens a desistir de pensar sobre algo quando não mais é duvidoso causa metade de seus erros.”
Em resumo, para Mill o conhecimento falível é aperfeiçoado pela crítica, sendo o progresso um fenômeno que ocorre em meio à dúvida, diversidade, controvérsia e estudo sério de posições contrastantes, e não pela uniformidade de pontos de vista e estabelecimento de autoridades.
Essa conclusão é expressa por meio de uma objeção retórica: “Mas como! (poderão perguntar) A ausência de unanimidade é condição indispensável do verdadeiro conhecimento?” Sim. Do mesmo modo que os economistas austríacos apontam para os equívocos gerados pelas análises de equilíbrio que proíbem o processo de mercado, barrando as atividades competitivas necessárias para que o conhecimento seja gerado, Mill argumenta que não existe aprendizado sem diversidade.
Essas idéias fornecem a base do ataque do filósofo inglês à censura. Sua argumentação não trata do mais óbvio direito à livre expressão dos censurados, mas das consequências não-premeditadas da censura. Concentra-se assim nos malefícios para a sociedade induzidos pelo bloqueio do processo de aprendizado por tentativas e erros, independente de uma opinião vetada ser verdadeira ou falsa.
O objetivo do controle das ideias
Devido ao valor da liberdade de pensamento como fonte de progresso intelectual, são condenadas tentativas de controlar a opinião, sobretudo no caso de censura pautada pela opinião pública. Nas famosas palavras de Mill:
“Se todos os homens menos um partilhassem a mesma opinião, e apenas uma única pessoa fosse de opinião contrária, a humanidade não teria mais legitimidade em silenciar esta única pessoa do que ela, se poder tivesse, em silenciar a humanidade.”
Depois de rejeitar a censura devido ao bloqueio do processo de aprendizado, Mill passa a investigar as razões que levam as pessoas a defenderem o controle das idéias. Para que tenhamos consciência dos perigos envolvidos no moderno flerte com a censura, é importante reconhecer que ela não é imposta por pessoas malévolas, mas por indivíduos sinceramente preocupados com a verdade e justiça.
Mill associa a censura à presunção de infalibilidade. Essa relação não recebe a consideração devida porque os sentimentos de superioridade moral e intelectual são sutis — se questionada explicitamente, nenhuma pessoa se declararia infalível.
Para Mill, no entanto, isso não significa que as pessoas levem em conta em seus julgamentos a precariedade de suas convicções:
“Infelizmente para o bom senso dos homens, ocorre que sua falibilidade está longe de exercer sobre seu juízo prático a influência que sempre se lhe permite na teoria, pois embora cada um se saiba perfeitamente falível poucos julgam necessário tomar precauções contra sua própria falibilidade, ou admitir a suposição de que uma opinião qualquer, da qual se sentem muito seguros, possa ser um dos exemplos de erro a que reconheçam estar sujeitos.”
De fato, não é fácil reconhecermos a nossa própria ignorância: aqueles que pontificam cheios de certeza sobre assuntos sobre os quais pouco leram gostam muito de citar o Efeito Dunning-Kruger, que justamente constata que aqueles que menos estudaram algo demostram maior confiança em suas opiniões.
O texto de Mill explora diversas situações nas quais se manifesta a presunção de infalibilidade. Para ele, as pessoas tendem a tomar como certas as convicções dos grupos aos quais pertencem, mesmo sabendo que grupos diferentes, em épocas diferentes, nutriam crenças hoje descartadas, fato que deveria induzir humildade intelectual.
Um exemplo curioso é a formação de bolhas de indivíduos com opiniões homogêneas em redes sociais. Boa parte das pessoas preocupadas com isso ironicamente propõem restrições aos modos de associação que na prática equivalem à presunção de que elas próprias pairariam acima do fenômeno, como uma elite de clérigos autorizados a ler textos heréticos.
Não ocorre a elas que as políticas de controle propostas privilegiem crenças derivadas da bolha do próprio censor e possam resultar na redução da diversidade de opiniões que pretendem combater.
O pressuposto de infalibilidade também se manifesta, para Mill, entre aqueles que afirmam que a liberdade de opinião não pode ser levada ao extremo. Aqueles que recomendam livre discussão apenas para casos duvidosos supõem infalibilidade ao arrogar para si o direito de determinar o que é conhecimento certo e o que é conjectural: “Dizer que uma proposição é certa, enquanto há alguém que lhe negará a certeza se lhe permitirem, mas a quem não permitem fazê-lo, significa assumir a nós mesmos e aos que concordam conosco como juízes da certeza e juízes que não ouvem o outro lado.”
Retoricamente, a defesa do controle de informações transita sutilmente de proposições óbvias, para as quais esse controle pode parecer razoável, para questões mais complexas. Pergunta-se com frequência ao defensor do falibilismo se ele negaria afirmações como “um mais um é igual a dois” ou “é errado o espancamento de bebês”. Mas, na prática, raramente observamos censores preocupados com a difusão de aritméticas exóticas em vez de opiniões políticas que os desagradem.
Lênin, que antes da revolução se dizia defensor da liberdade de imprensa, logo após a mesma determina, em decreto de 27 de outubro de 1917, que órgãos da imprensa poderiam ser fechados “se semearem confusão através de óbvia distorção difamatória dos fatos”, ou, traduzindo para a linguagem moderna, “qualquer pessoa pode ser calada se for pega semeando confusão por meio de fake news“.
Isso não revela apenas oportunismo e inconsistência por parte do ditador: dada sua fé ilimitada no referencial teórico que emprega, qualquer coisa que contrarie suas crenças será sinceramente vista como mentira inequívoca, cuja divulgação consiste em crime.
Do mesmo modo, partindo de exemplos concretos de notícias falsas, o defensor do combate às fake news por meio de censura invariavelmente classifica material contendo opiniões polêmicas de que não gosta como se fosse relativo a fatos verificáveis, ilustrando o deslocamento do argumento de proposições incontroversas para questões debatidas.
Enquanto a perspectiva falibilista celebra a diversidade de opiniões como fonte de aprendizado e confia na crítica como método falível de combate à falsidade, a defesa do controle deposita sua fé na infalibilidade do censor que guia seu rebanho. Se a diversidade implica necessariamente convivência com o erro, a alternativa resulta em tornar universal um erro particular.
Portanto, partindo-se da perspectiva falibilista, que compara arranjos institucionais em termos de sua capacidade de correção de erros, é completamente equivocada a crença de que “fake news não é liberdade de opinião”. Pelo contrário, esta última pode ser definida como a liberdade dos outros dizerem algo que cada um considera ofensivo.
A censura do verdadeiro, ou: “se me desagrada, deve ser censurado”
Além de examinar a censura aplicada a algo que possa ser verdadeiro, Mill contempla ainda as possibilidades de que o material censurado possa ser falso ou ainda contenha algum aspecto da verdade. Iniciemos por essa última, que adiciona elementos importantes ao argumento exposto no último parágrafo.
O desenvolvimento do conhecimento humano, no texto de Mill, não implica necessariamente a substituição de falsidades por verdades, ou teorias mais restritas por teorias mais gerais, sendo comum que perspectivas diferentes contenham elementos diferentes da verdade e que parte desta deixe de ser considerada mediante o abandono de um ponto de vista. Se de fato for o caso que raramente a verdade toda esteja concentrada em apenas um ponto de vista, a censura também será prejudicial.
Nas palavras de Mill, “quando se encontram pessoas que, em relação a qualquer assunto, formam exceção à manifesta unanimidade do mundo, mesmo se o mundo estiver certo, é sempre provável que os dissidentes tenham a dizer algo digno de se ouvir, e que a verdade perca muito com seu silêncio.”
Essa observação ganha importância se considerarmos que, como notaram diferentes filósofos e cientistas depois de Mill, o crescimento do conhecimento se dá pela recombinação entre idéias, algo que possibilita a exploração de consequências não antecipadas de conceitos retirados de outras tradições. Esse argumento se aplica não apenas à ciência; a política, em uma democracia, também requer a diversidade de pontos de vista, não uma perspectiva única tida como politicamente correta.
Considere mais uma vez a moderna defesa do controle do fluxo de informações em meios eletrônicos. Como a pretensão de infalibilidade do censor resulta, na prática, não no combate de mentiras, mas na supressão de opiniões divergentes, os limites aos abusos dos dirigentes, impostos pelo livre debate, são atenuados se as críticas só puderem ser feitas a partir de uma perspectiva ideológica particular.
Nesse sentido, os órgãos tradicionais da imprensa põem a perder seu legado de luta pela liberdade de opinião diante da expansão de formas rivais de comunicação, experimento natural que os força a revelar se, por liberdade de opinião, se referiam apenas à sua própria e não à liberdade de expressão propriamente dita.
Novamente, o conceito se torna vazio se não for definido como o direito do outro dizer o que me desagrada.
Os ungidos, Popper e a presunção da infalibilidade
A presunção de infalibilidade tem origem intelectual e moral. Consideremos mais de perto esse último aspecto.
Para Mill, a presunção de infalibilidade gera as mais terríveis consequências quando uma opinião censurada é qualificada como imoral, pois a sensação de certeza é mais intensa.
Sobre o julgamento de Sócrates, o autor especula que seus acusadores não seriam homens maus. Da mesma forma, a censura e perseguição aos cristãos no Império Romano muitas vezes teria partido de governantes esclarecidos, que tinham convicção moral de que estavam certos.
Embora evoque a lembrança de inquisidores do passado, a convicção moralista é central no debate político contemporâneo, em especial no que diz respeito à ideologia do “politicamente correto”. Por si só, essa expressão implica a negação de uma sociedade livre, pois substitui o debate entre pessoas com pontos de vista diferentes sobre quais seriam as políticas mais apropriadas por uma visão simplista que atribui verdade e justiça a um ponto de vista particular.
A melhor análise do aspecto moralista da ideologia contemporânea é feita por Thomas Sowell, que a rotula “visão dos ungidos”.
Como os ungidos não estão familiarizados com a existência de teorias rivais e com análises sobre a eficácia de políticas alternativas — que os levariam a considerar a existência de trade-offs, consequências não-premeditadas de políticas bem intencionadas ou ainda custos de diferentes arranjos institucionais —, adotam uma perspectiva política maniqueísta, que classifica os indivíduos como favoráveis ou contrários a algum fim, em vez pessoas que divergem sobre meios.
Como identificam automaticamente sua opinião política com a defesa de cada causa, se colocam como os esclarecidos, que possuem consciência dos problemas sociais, em contraste com os ignorantes, que precisariam ser educados pelo seu exemplo e protegidos da desinformação.
A análise de Sowell ilustra de forma perfeita a tese segundo a qual a presunção intelectual e moral tem entre suas causas a desconsideração pelo caráter falível do conhecimento e entre suas consequências o autoritarismo.
Outro exemplo do mesmo fenômeno é o ressurgimento da defesa da violência física contra quem professa opiniões diferentes. Também nesse caso a pretensão de infalibilidade se revela pela transferência da argumentação do certo para o duvidoso.
O primeiro passo da defesa invoca um trecho de uma nota de rodapé da Sociedade Aberta e Seus Inimigos, na qual Popper se refere ao paradoxo segundo o qual uma sociedade livre não poderia tolerar intolerantes, que utilizam “punhos e pistolas” em vez de argumentos. O segundo passo aplica essa idéia a um mal inequívoco, como o nazismo ou o fascismo. O terceiro passo, crucial mas implícito, classifica como fascista qualquer opinião contrária à própria, justificando em nome da tolerância o uso de punhos e pistolas.
As pessoas com inclinações autoritárias fascinadas por essa nota de rodapé deveriam ler também o corpo do texto ao qual ela se refere. Nele, Popper rejeita a abordagem política que indaga quem deveria governar (o bom, justo, o sábio, a maioria etc.), questão que gera uma série de paradoxos (eleitos optando por ditaduras, bons cedendo a maioria, esta cedendo ao mais inteligente etc.).
Para Popper, esses paradoxos teriam relevância menor se mudarmos de perspectiva. Em vez de nos preocuparmos em conferir o poder a um governante ideal enquanto nos decepcionamos eternamente com as alternativas concretas, a análise deveria indagar como podemos limitar a capacidade de um mau governante fazer estragos.
Se tivermos em mente a sugestão de Popper, o maior autor falibilista do século XX, a questão se inverte completamente: quais seriam as instituições que inibem a possibilidade de que pessoas dogmáticas, imbuídas de certezas alimentadas pelo desconhecimento de perspectivas alternativas, tenham a liberdade de saíram por ai batendo em pessoas que discordam delas?
A justificação da violência através da pretensão de conhecimento não é fenômeno recente. O moderno “antifascismo” tragicamente imita estratégia comum em regimes totalitários do século XX. Nos campos de trabalhos forçados soviéticos, os presos políticos classificados como fascistas eram em sua maioria originalmente fiéis a ideologia coletivista prevalecente, mas que divergiram marginalmente sobre algum detalhe do credo ou foram presos devido a uma ação contra alguma classe de “inimigos do povo”.
Muitos investiam contra a liberdade de fascistas imaginários — aquelas pessoas que nutriam opiniões diferentes das suas — para descobrirem no instante seguinte que eles próprios seriam os “fascistas” da vez.
Censurando o falso
Resta ainda considerar a terceira possibilidade contemplada por Mill: a censura de opiniões patentemente falsas.
De forma consistente com sua crença de que a razão se nutre da livre discussão, também nesse caso o autor rejeita a censura. Dois motivos são apresentadas.
Uma crença verdadeira seria um dogma morto se fosse apenas repetido, herdado por argumento de autoridade, sem que as pessoas saibam em um debate com as idéias falsas apontar as razões que a sustentam. Um exemplo moderno é fornecido pelo terraplanismo, que forçou muitas pessoas a travarem contato com os argumentos e experimentos que o refutam, em vez de apenas aceitarem a tese correta como informação decorada na escola ou já esquecida.
Para Mill, não apenas os motivos que sustentam uma proposição seriam desconhecidos na ausência de discussões, mas também o próprio significado da proposição. Nossas crenças teriam pouco impacto sobre nossa ação se fossem repetidas mecanicamente, sem que nuances sobre seu significado fossem avivadas pelo debate, modificando nosso comportamento. Podemos oferecer como exemplo o próprio compromisso com a liberdade de opinião, hoje valor apenas defendido nominalmente, que só pode ser revivificado pela discussão dos fundamentos desse valor.
A autocensura decorrente da pressão pública
Mill dedica o final de seu texto para enfatizar os malefícios da censura autoimposta, sob a pressão da opinião pública.
O autor nota uma assimetria entre opiniões comuns e opiniões mais raras. A liberdade que um defensor de opiniões majoritárias tem para empregar sarcasmo, comentários injuriosos e “discussão intemperada” não se permite ao defensor de posições minoritárias, que tem que medir cada palavra para não ofender, gerar reação desmedida contra si, como o “cancelamento” moderno.
Mill se preocupa com a inibição do aprendizado por diversidade e crítica causada pelo policiamento a posturas impopulares, com frequência classificadas como como imorais:
“A pior ofensa dessa espécie que se pode cometer numa polêmica consiste em estigmatizar, como homens maus e imorais, os que sustentam a opinião contrária. Os que sustentam qualquer opinião impopular estão particularmente expostos a esse tipo de calúnia, pois em geral são pouco numerosos e pouco influentes, e ninguém mais, além deles mesmos, tem muito interesse em ver fazer-lhes justiça.”
Como o crescimento do conhecimento depende do debate entre diferentes pontos de vista, a hostilidade dirigida contra posturas heterodoxas que inibem sua manifestação prejudicam o progresso humano.
Exemplo disso é a assimetria que encontramos na discussão política a respeito de que conduta é considerável aceitável ou condenável. Basta discordar da maioria para que sua opinião seja considerada como “discurso de ódio”, ao passo que defesas explícitas de violência e preconceito, o famoso “ódio do bem”, são relativizadas ou ignoradas se partirem dos defensores da ideologia padrão.
Embora a causa da liberdade de opinião tenha pouca chance de prosperar sob instituições que cada vez mais transferem as decisões para a esfera coletiva, politizando cada aspecto da vida, ainda assim, diante da frequência com a qual a censura volta a ser considerada, é nossa obrigação revisitar os fundamentos da liberdade tal como expostos por autores como John Stuart Mill.
Fábio Barbieri é mestre e doutor em economia pela USP. É professor da USP na FEA de Ribeirão Preto