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Autonomia ou fraude? País discute limites da ‘pejotização’ do trabalhador

Ricardo Westin

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Das recentes transformações do mercado de trabalho brasileiro, uma das mais visíveis é a crescente “pejotização”. No lugar da tradicional admissão com carteira de trabalho assinada, os trabalhadores vêm sendo cada vez mais contratados como pessoas jurídicas — o termo “pejotização” vem da sigla PJ.

Nessa situação, não existe vínculo empregatício porque se trata de um acordo comercial entre duas empresas — a empresa contratante e a pequena empresa aberta pelo trabalhador para oferecer seus serviços. Essa relação não precisa contemplar os direitos trabalhistas determinados pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Os trabalhadores autônomos com CNPJ duplicaram nos últimos anos, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), passando de 3,3% da força de trabalho brasileira em 2012 para 6,5% em 2024 — este último índice equivale a 7 milhões de pessoas.

Segundo juízes trabalhistas, procuradores e auditores-fiscais do Trabalho, essa metamorfose do mercado é preocupante e precisa ser revertida porque grande parte das pejotizações é fraudulenta. Muitos dos trabalhadores “pejotizados” são empresas apenas na letra do contrato. Na prática, atuam como empregados diretos e, portanto, deveriam ter a carteira assinada.

Para os empresários, por outro lado, a pejotização deve continuar por ser uma forma de trabalho que é complementar, está adaptada aos dias atuais e não busca substituir o emprego tradicional.

Um dos motivos que levam os empregadores a substituir a mão de obra celetista (sob amparo da CLT) pela “pejotizada” é a diminuição de gastos. Contratando pessoas jurídicas, eles pagam menos tributos ao Estado e não precisam conceder nenhum direito trabalhista. Assinar a carteira, por sua vez, é mais oneroso, já que inclui uma série de garantias e proteções ao trabalhador.

O auditor-fiscal Leonardo Decuzzi, diretor de Assuntos Parlamentares do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho (Sinait), afirma que as inspeções do Ministério do Trabalho têm constatado um número crescente de pejotizações irregulares em todo o país:

— Até algum tempo atrás, eram principalmente os profissionais mais especializados e qualificados que trabalhavam como pessoas jurídicas para outras empresas, entre os quais os médicos e os diretores de grandes companhias. Isso mudou. A pejotização se espraiou e agora atinge majoritariamente os trabalhadores de baixa renda. O que se vê é uma verdadeira pandemia de precarização do trabalho.

Um estudo do Ministério do Trabalho divulgado em junho mostra que, de todas as pejotizações fraudulentas detectadas pelos auditores-fiscais do Trabalho entre 2022 e 2024, cerca de 56% envolveram trabalhadores com remuneração mensal de no máximo R$ 2 mil.

O mesmo levantamento aponta que a pejotização é mais frequente entre pessoas que atuam, por exemplo, como vendedores do comércio, garçons, operadores de centros de distribuição de mercadorias, secretárias de escritório, trabalhadores da construção civil e atendentes de telemarketing.

Esse modelo de trabalho foi impulsionado pela reforma trabalhista de 2017, que liberou a terceirização de todas as atividades das empresas — a pejotização é um subtipo de terceirização. Antes, apenas as atividades-meio podiam ser executadas por firmas terceirizadas, como limpeza, manutenção e vigilância. A partir de então, também puderam ser terceirizadas as atividades-fim, que são aquelas ligadas diretamente ao produto ou ao serviço principal da empresa.

O juiz trabalhista Marco Aurélio Marsiglia Treviso, vice-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), explica:

— A terceirização tradicional implica relações triangulares, isto é, uma empresa contrata outra empresa, terceirizada, que, por sua vez, emprega os trabalhadores celetistas que atuarão na primeira. O que se verificou, porém, foi que muitas relações passaram a ser bilaterais, com a empresa contratando diretamente os trabalhadores sob a roupagem de pessoas jurídicas. Quando isso ocorre, a Justiça do Trabalho reconhece que se trata de fraude.

De acordo com ele, o direito trabalhista não rechaça automaticamente o enquadramento de trabalhadores como pessoas jurídicas. Treviso observa que existem casos em que a pejotização é perfeitamente legítima:

— Se o individuo que atua como PJ para outra empresa tem autonomia para definir suas condições de trabalho, seus horários e o preço do seu serviço e delegar a execução das tarefas a terceiros, por exemplo, não há nenhum problema.

O problema surge quando o trabalhador pejotizado preenche os quatro requisitos do vínculo de emprego previstos pela CLT: pessoalidade, onerosidade, habitualidade e subordinação. Treviso explica:

— Quando ele próprio precisa executar o serviço (sem poder delegá-lo), recebe um pagamento por isso, trabalha com regularidade (não eventualmente) e se submete às ordens do empregador, o vínculo empregatício está configurado e o trabalhador é um empregado. Não importa se o contrato diz que é um prestador de serviço. Ele, portanto, deveria ter a carteira de trabalho assinada.

A continuidade ou não da pejotização com elementos de relação celetista está nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF). Em abril, o ministro Gilmar Mendes determinou que todos os processos que questionam a licitude desse tipo de contratação ficassem parados até o Plenário do STF tomar uma decisão que servirá de referência para todos esses casos. Ou seja, a decisão que for tomada, contrária ou favorável à legalidade da pejotização, precisará ser seguida por toda a Justiça brasileira.

O tema foi posto em pauta devido ao crescente número de recursos vindos da Justiça do Trabalho, o que tem sobrecarregado o STF. Em geral, nos processos movidos pelos trabalhadores pejotizados contra as empresas contratantes após o fim do contrato, os juízes trabalhistas reconhecem o vínculo empregatício quando entendem que a contratação como pessoa jurídica mascarou uma relação de emprego. As empresas condenadas, por sua vez, recorrem dessas decisões até chegar ao Supremo.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) registra em suas estatísticas a explosão de processos. Em 2020, foram apresentados à Justiça do Trabalho 167 mil processos pedindo reconhecimento de vínculo empregatício. Em 2024, foram 443 mil. Neste ano, apenas no primeiro semestre, cerca de 234 mil ações com a mesma demanda foram ajuizadas.

O procurador Renan Bernardi Kalil, que atua no Ministério Público do Trabalho (MPT) como coordenador nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho, afirma:

— Recebemos com muita preocupação o reconhecimento da repercussão geral e a suspensão dos processos, porque é um tema que afeta a vida de milhões de brasileiros. A decisão do Supremo poderá alterar bastante a maneira como o direito do trabalho opera no Brasil.

O trabalhador costuma aderir à pejotização por diferentes razões. Uma delas é a seguinte: são feitos menos descontos em seu rendimento bruto. Enquanto o trabalhador celetista que ganha um salário mínimo mensal tem cerca de R$ 433 descontados no contracheque e destinados ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), por exemplo, o pejotizado que se enquadra como microempreendedor individual (MEI) paga cerca de R$ 76 mensais ao INSS. Existem, ainda, outros tributos e descontos.

— Estudos mostram que quem lucra mais com a pejotização, considerando os tributos recolhidos, é o empregador. Enquanto o trabalhador pessoa jurídica recolhe, em média, 6% menos que o celetista, a economia do empregador gira em torno de 30% — diz Kalil.

Outra razão para o trabalhador aderir à pejotização é a possibilidade de uma remuneração mais alta (do que a que receberia como celetista). Para o patrão, mesmo oferecendo um pagamento mais elevado para convencer o trabalhador a se “pejotizar”, esse tipo de contratação continua sendo mais econômico que aquela via CLT.

— No início, a situação pode parecer vantajosa. No médio e no longo prazo, porém, o trabalhador acaba sentindo no bolso a falta dos direitos trabalhistas — argumenta o procurador do MPT.

Além disso, o trabalhador pode se ver obrigado a se tornar pessoa jurídica porque determinada empresa deixa de admitir celetistas e passa a abrir vagas apenas para pejotizados. Sem muitas ofertas de emprego no mercado, o trabalhador aceita a exigência para não ficar desempregado.

Ele pode, ainda, ser simplesmente coagido. Segundo os auditores-fiscais do Trabalho, não são raros os casos em que a empresa demite os funcionários sem justa causa e promete recontratá-los, contanto que seja como pessoas jurídicas.

O recente estudo do Ministério do Trabalho também revela que, no período entre 2022 e 2024, cerca de 4,8 milhões de trabalhadores que eram celetistas passaram a ser pessoas jurídicas. Não é possível, contudo, saber quantos continuaram atuando nas mesmas empresas.

De acordo com os críticos da pejotização ilícita, esse modelo de trabalho traz uma série de malefícios para o país. Primeiro, o trabalho e a vida do trabalhador se tornam cada vez mais precários, já que a pessoa jurídica não tem direito a férias, 13º salário, descanso semanal remunerado e licença-maternidade, entre outros direitos básicos.

Além disso, as mulheres podem ganhar menos que os homens na execução das mesmas funções, já que a igualdade salarial alcança apenas os trabalhadores contratados da forma tradicional. E as cotas que as empresas precisam oferecer na contratação de aprendizes e pessoas com deficiência não se aplicam aos trabalhadores pejotizados.

— É como se estivéssemos regredindo ao século 19, quando os trabalhadores eram explorados, não tinham nenhum direito social e protestavam pedindo as proteções mais elementares — compara Leonardo Decuzzi, do sindicato dos auditores-fiscais do Trabalho. — Além disso, o Brasil está desrespeitando compromissos internacionais, como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável estabelecidos pela ONU para serem alcançados até 2030, que incluem a promoção do trabalho decente e a proteção dos direitos trabalhistas.

O economista Nelson Marconi, professor e coordenador do curso de administração pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo, afirma:

— No processo de precarização do trabalho, quem mais sofre são os trabalhadores de baixa de renda. Os pejotizados com mais qualificação normalmente conseguem se blindar, porque têm maior poder de barganha para negociar remunerações mais altas e podem fazer com mais facilidade uma poupança que compense a falta do 13º salário e do FGTS, por exemplo.

De acordo com ele, não são apenas os trabalhadores os prejudicados pelas pejotizações irregulares:

— Os próprios empregadores também perdem. Como a pessoa jurídica pode ser demitida facilmente e a qualquer momento, ela acaba sendo menos dedicada ao trabalho e menos leal à empresa, o que pode até comprometer a produtividade.

Outros prejuízos decorrentes da pejotização fraudulenta são o aumento do déficit da Previdência Social e a perda de arrecadação tributária, já que implica o recolhimento de menos recursos para o Estado. Entre as áreas prejudicadas, estão a habitação popular, a infraestrutura urbana e o saneamento básico, que são custeados com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

— A tendência é que, com o passar do tempo, as pessoas comecem a sentir na pele a perda dos direitos trabalhistas e o enfraquecimento da rede de proteção de social e passem a pressionar o poder público para expandir os gastos sociais. O Estado, no entanto, pouco poderá fazer em razão da queda da arrecadação dos tributos que hoje financiam os direitos sociais — avalia Marconi.

Os críticos da pejotização indiscriminada também apontam como malefício o esvaziamento da Justiça do Trabalho e o consequente desamparo da mão de obra — uma vez que os juízes trabalhistas, por força do viés protetivo da CLT, entendem que o trabalhador é a parte mais fraca na relação com o empregador.

Além de julgar a legitimidade da contratação de trabalhadores como pessoas jurídicas, o STF decidirá se os litígios envolvendo esses contratos continuarão sendo decididos pela Justiça do Trabalhou ou passarão para a alçada da Justiça comum.

Para Ivan Alemão, professor de direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) e desembargador aposentado do Trabalho, o imbróglio envolvendo a pejotização representa, no fundo, uma briga entre o STF e o Tribunal Superior do Trabalho (TST):

— O STF tem decidido que, se há um contrato escrito entre duas empresas para a prestação de serviços, trata-se de uma relação comercial, não trabalhista, que fica a cargo da Justiça comum. É uma forma de esvaziar lentamente a Justiça do Trabalho. Se o STF julgar que o entendimento deve mesmo ser esse, a pejotização avançará de forma desenfreada sobre os empregos com carteira assinada, e a Justiça do Trabalho, na prática, perderá a razão de existir. Isso seria um erro. Não cabe ao STF decidir sobre a manutenção ou a extinção da Justiça do Trabalho, mas ao Congresso Nacional, por meio de uma reforma do Judiciário discutida com a sociedade.

Os críticos também dizem que, indo obrigatoriamente para a Justiça comum, as ações envolvendo a pejotização congestionarão ainda mais as varas e os tribunais e tornarão as decisões mais demoradas. Atualmente, em toda a estrutural judicial brasileira, as varas e os tribunais do Trabalho são aqueles que julgam os processos com maior rapidez.

Em defesa da pejotização,  a Confederação Nacional da Indústria (CNI) argumenta que esse tipo de modelo de trabalho só deveria ser combatido quando os tributos incidentes sobre ele não fossem devidamente recolhidos e quando se demonstrasse que o trabalhador foi coagido a criar uma pessoa jurídica.

Alexandre Vitorino, diretor jurídico da CNI, afirma o seguinte:

— É preciso que, dada a atual digitalização da sociedade, haja uma ampla oferta de diferentes tipos de contratação de mão de obra e não haja uma diretiva do dirigismo estatal, que parte da premissa de que o trabalho subordinado é o único tipo de trabalho digno. A pejotização é uma tipo complementar, e não busca substituir o trabalho assalariado. Países da União Europeia e da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] adotam esse modelo de trabalho sem que sejam tachadas de avessas aos direitos sociais ou inimigas do trabalho subordinado.

De acordo com ele, é precipitado avaliar que a pejotização é negativa quando a reforma trabalhista, feita em 2017, ainda não completou dez anos:

— Julgamentos dessa natureza são precipitados. É necessário deixar que o Brasil viva a experiência da terceirização e da pejotização por mais tempo para só então fazer comparações com a mão de obra subordinada.

Vitorino entende que é por interesses corporativos que a Justiça do Trabalho se opõe ao trabalho pejotizado:

— A Justiça do Trabalho só existe por causa da relação de emprego. Quando se criam alternativas de trabalho, ela passa a julgar menos matérias e perde uma boa dose da autoridade que tem. Trata-se, no fim das contas, de uma briga pela autoridade em relação às questões que envolvem a mão de obra no Brasil. O STF só resolveu agir depois que a Justiça do Trabalho passou a desobedecer às suas determinações.

Para o diretor jurídico da CNI, os trabalhadores pejotizados que ao fim do contrato processam as empresas agem muitas vezes de má-fé, já que, quando ganham a causa e o vínculo empregatício é reconhecido, não precisam pagar os tributos exigidos na contratação via CLT que deixaram de ser recolhidos.

Segundo Vitorino, o que precisa ser combatido é o trabalho informal, que não tem proteção nenhuma. Ele acrescenta:

— Nunca houve tanto trabalho para as pessoas como agora. É algo que o governo comemora. É preciso dizer, porém, que isso se deve, em grande parte, à terceirização, à pejotização, aos trabalhos por plataforma. Até hoje não vi nenhum estudo sério que mostre que a pejotização seja prejudicial para o país.

O Supremo Tribunal Federal marcou para 10 de setembro uma audiência pública sobre a questão. O Senado, por sua vez, fará, a pedido do senador Paulo Paim (PT-RS), uma sessão temática em 29 de setembro para debater o assunto.

Em maio, também a pedido de Paulo Paim, a Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado promoveu uma audiência pública com pesquisadores, trabalhadores e instituições ligadas ao direito trabalhista.

— Transformar trabalhadores celetistas em pessoas jurídicas é uma fraude cometida pelos empresários — afirma Paim. — A CLT vem sofrendo insistentes ataques. Os poderosos não gostam das leis trabalhistas porque querem explorar os mais pobres e vulneráveis quase como mão de obra escravizada. É por pressão deles que os projetos de lei que reduzem a jornada de trabalho não avançam. O Congresso Nacional precisa estar do lado certo da história e não permitir a pejotização sem limites.

Em abril, logo depois que o STF decidiu que a pejotização entraria em sua pauta, o senador Fabiano Contarato (PT-ES) apresentou um projeto de lei que estabelece as regras para que a contratação dos serviços de uma pessoa jurídica seja considerada regular (PL 1.675/2025). Os critérios propostos seguem aqueles defendidos por juízes trabalhistas, procuradores e auditores-fiscais do Trabalho. Ele argumentou:

“O projeto não tem como objetivo restringir a terceirização nem vedar a contratação de pessoas jurídicas. Seu intuito é apenas assegurar que contratos fraudulentos sejam identificados e anulados, garantindo que o trabalhador não seja compelido a abdicar de seus direitos para manter sua empregabilidade. A proposta visa, assim, promover um equilíbrio entre a livre iniciativa e a proteção social do trabalhador”.

Caso o projeto de Contrato seja aprovado, a respectiva lei prevalecerá sobre a decisão do STF.

Reportagem: Ricardo Westin
Edição: Ricardo Koiti Koshimizu
Edição de fotos: Bernardo Ururahy
Infografia: Fernando Ribeiro

Fonte: Agência Senado

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