The news is by your side.

No STF, o “cala a boca” não morreu

0

 

Imagine um país onde as pessoas vivam sob o domínio do medo. Medo de falar, de escrever, de debater fatos desagradáveis para poderosos e, sobretudo, de encarar a imposição de indenizações vultosas ou a privação da própria liberdade em decorrência de manifestações tidas como “inconvenientes”. Talvez eu consiga ajudar você a identificar essa terra povoada por alguns amordaçados rebeldes e por uma massa de silenciosos acuados.

Em decisão recente[1], nossa Corte Suprema (STF) manteve um julgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que havia condenado o jornalista Rubens Valente ao pagamento da quantia de R$ 310 mil ao ministro Gilmar Mendes a título de danos morais pela publicação do livro Operação Banqueiro. Em um determinado capítulo da obra, destinada a ser um relato jornalístico dos bastidores da operação policial conhecida como Satiagraha, Rubens mencionou casos polêmicos envolvendo o Supremo Togado, dentre os quais as relações deste com o Ministério Público e com advogados atuantes na defesa do banqueiro André Esteves, principal alvo da operação. Enquanto redigia o livro, o jornalista teria tentado, por um ano inteiro, sem sucesso, agendar entrevistas com o ministro Gilmar para escutar sua versão sobre os fatos.

Processado por Gilmar, Rubens foi absolvido em primeira instância, mas, em seguida, condenado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) ao pagamento de indenização no valor de R$ 30 mil. Insatisfeito com o quantum dos danos, que deve ter considerado ínfimos face à sua honra ilibada, o togado recorreu ao STJ, que não só manteve a obrigação de indenizar como ainda majorou em mais de 10 vezes a condenação, determinando o pagamento da quantia de R$ 310 mil. Chegado o caso ao STF, os pares do ministro ofendido corroboraram na íntegra o entendimento do STJ, tanto no que diz respeito ao dever de ressarcir quanto no tocante ao valor do dano.

O assunto envolve dois interesses em aparente conflito: de um lado, o direito à intimidade do que se passa no ambiente familiar e até profissional, e, do outro, o direito à liberdade de expressão, assegurado na Constituição Federal (CF).

Em primeiro lugar, vale questionar se os fatos relacionados a um agente público em sua atuação como braço estatal da justiça poderiam ser encobertos sob o véu da privacidade, evitando-se, de forma legítima, a penetração de olhares intrusos nos gabinetes. A resposta em sentido negativo me parece óbvia, já que a transparência e a publicidade dos atos dos servidores públicos – incluindo os togados – são princípios basilares de qualquer Estado Democrático, salvo em situações muito excepcionais, onde o segredo de justiça se imponha como necessidade de preservação da intimidade familiar ou do êxito de investigações, e desde que tal sigilo não comprometa o interesse público à informação[2].

Antes que o juridiquês acima continue entediando você, caro leitor, traduzo. Uma vez realizada a operação, e desaparecidos os riscos de vazamentos capazes de ensejar a fuga de criminosos ou a destruição de provas, os pagadores de impostos têm interesse relevante em conhecer os meandros de grandes operações anticorrupção, o que compreende os fundamentos das decisões do Sr. Gilmar Mendes e seus eventuais elos com figuras-chave no processo.

Aliás, a decisão ora abordada dialoga de perto com outra deliberação sobre matéria idêntica, em relação à qual o entendimento supremo foi bem outro. Se dizem que nós, brasileiros, temos memória fraca, e se um dos objetivos dessa coluna consiste em relembrar fatos sobre os quais muitos calam, aqui vai o nosso momento “saudade” de hoje: a polêmica das biografias.

Corria o ano de 2015 quando a cúpula do Judiciário se debruçou sobre uma ação (ADI 4815) proposta pela Associação Nacional dos Editores de Livros – ANEL para sustentar a inconstitucionalidade de duas normas do nosso Código Civil (CC/2002)[3]. Na redação infeliz do aludido trecho da nossa lei civil, os escritos e a imagem de alguém só poderiam ser divulgados se: (i) autorizados pelo envolvido; ou (ii) indispensáveis à administração da justiça e à manutenção da ordem pública. Assim, foi com facilidade que a ANEL demonstrou a inconstitucionalidade dos referidos artigos do CC/2002, que estipulavam amarras incompatíveis com a livre manifestação do pensamento, e até com as liberdades artísticas, todas elas asseguradas pela CF.

Na época, as supremas togas acolheram a ação por unanimidade e se esmeraram em seus discursos em prol dos direitos à expressão artística e à criação de obras. Nunca é demais recordar trecho do voto da ministra Carmen Lúcia, relatora do caso, ao afirmar que: “não é proibindo, recolhendo obras ou impedindo sua circulação, calando-se a palavra e amordaçando a história que se consegue cumprir a Constituição. A norma infraconstitucional não pode amesquinhar preceitos constitucionais, impondo restrições ao exercício de liberdades.”[4]

Tendo os togados entendido ser legítima a circulação das tais biografias, o uso destas não poderia ensejar, a priori, qualquer dever de indenizar por parte dos autores. Seria punir como ilícita uma obra reconhecidamente lícita e incorrer em contradição grosseira.

No entanto, decorridos alguns anos, as togas, outrora tão enfáticas sobre a proteção à liberdade artística, assumiram, nesse caso Gilmar, postura diametralmente oposta em relação à liberdade jornalística. Ora, se é dada plena autonomia aos artistas para a concepção de obras, biográficas ou não, em um plano muitas vezes abstrato e imaginário, com maior razão ainda teria de ser reconhecida a independência dos jornalistas para, com base em fatos apurados a partir de suas fontes, divulgarem seus relatos e exercerem a honrosa tarefa de informar a população sobre assuntos de interesse público.

De fato, em todas as democracias, o papel da imprensa é precisamente o de duvidar das narrativas oficiais e de perturbar os detentores do poder, de modo a que a curiosidade jornalística pressione os ocupantes de cargos públicos a darem as devidas satisfações aos que os sustentam. Quanto mais madura for a democracia, maior será a autonomia dos jornalistas, que se sentirão motivados e amparados, inclusive pelos veículos de imprensa por eles representados, para a formulação de perguntas embaraçosas, para o acompanhamento de investigações policiais delicadas e para a divulgação, a plenos pulmões, dos bastidores de conversas e amizades nada republicanas.

Assim, a decisão comentada representa um precedente perigoso para os jornalistas, que, a partir de agora, pensarão muito antes de ouvir certas fontes e de seguir pistas que possam desembocar na podridão de caciques vistos como intocáveis, inclusive sob o manto das togas, e bem capazes de calar-lhes as bocas, por incontáveis meios. Invocando a famosa frase cunhada pela ministra Carmen Lúcia, quando do julgamento das biografias, de que “o cala a boca já morreu”, em referência ao encerramento da distante ditadura militar, retruco: não morreu não, ministra, pois está bem ativo e sempre à espreita de línguas e dedos inconvenientes para amordaçar.

[1] https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/stj-stf-determinam-jornalista-pague-310-mil-gilmar-mendes-criticas-livro/

[2] Art. 93 da CF – Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

(…) IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.

[3] Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma

[4] https://stf.jusbrasil.com.br/noticias/196993447/stf-afasta-exigencia-previa-de-autorizacao-para-biografias#:~:text=Por%20unanimidade%2C%20o%20Plen%C3%A1rio%20do,para%20a%20publica%C3%A7%C3%A3o%20de%20biografias.

 

Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumiremos que você está ok com isso, mas você pode cancelar se desejar. Aceitarconsulte Mais informação