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A economia e a síndrome de Sísifo

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Um mito bem conhecido da Grécia antiga é o de Sísifo, considerado o mais inteligente e astuto dos mortais, mas que — certamente por julgar que essas suas qualidades o dispensariam de qualquer atitude de humildade — ousou desafiar e tentar iludir os deuses, o que lhe valeu uma punição terrível: rolar eternamente com as mãos, montanha acima, uma enorme pedra de mármore. Sempre que estava perto de alcançar o cume, extenuado pela faina sobre-humana, uma força avassaladora fazia a pedra rolar novamente morro abaixo até o ponto de onde partira, jogando fora todo o imenso esforço despendido. É desse mito que vem a expressão “trabalho de Sísifo”, utilizada para designar aquelas tarefas que exigem esforços repetitivos penosos e irremediavelmente fadados ao fracasso, em infindáveis ciclos que alternam esperança e frustração e sem qualquer possibilidade de tentativa de recusa ou desistência.

A economia brasileira, infelizmente, parece condenada há bastante tempo ao sobe e desce de Sísifo: quando tudo parece estar indo bem, a pedra rola ladeira abaixo, lá permanece por algum tempo e em seguida é novamente posta a subir, para depois cair novamente. Não estou me referindo apenas aos ciclos econômicos a que todas as economias estão sujeitas, mas a um fenômeno mais amplo, cuja natureza transcende a economia e que abraça, entre outros campos, o político, o jurídico, o histórico e o psicológico.

Do ponto de vista estritamente econômico, sabe-se há bastante tempo quais são as causas da formação da riqueza (ou da manutenção da pobreza) das nações, a saber, a liberdade econômica, a economia de mercado e o livre comércio. Em outras palavras, a riqueza dos países depende, essencialmente, de um cenário institucional garantidor das liberdades e dos direitos individuais, que proporcione aos agentes econômicos o exercício autônomo e responsável de seu esforço, criatividade, inventividade, trabalho e outras virtudes do espírito humano, diante do problema da escassez.

A diferença entre os liberais e os ditos “progressistas” é que os últimos, guiados pelo construtivismo racionalista, desejam que o Estado, direta ou indiretamente, se aposse do espetáculo, impondo a todos o cenário, o “script“, a rigorosa distribuição dos papéis e os preços dos ingressos referentes a uma peça cujos teor e resultados são pré-concebidos e impostos a todos.

O crescimento econômico como ramo teórico remonta a Adam Smith, com a publicação de A Riqueza das Nações, em 1776. Seguramente, somente depois da publicação dessa obra é que se começou a perceber — concordando-se ou não com suas teses — que o desenvolvimento econômico poderia estar ao alcance de qualquer nação. A questão levantada por Smith, que — convém lembrarmos — era um filósofo moral que se interessou pela Economia, é, a rigor, de natureza empírica e pode ser sintetizada em uma importante pergunta: se o objetivo é promover o bem comum e a prosperidade geral, o melhor meio é encorajar os indivíduos a fazerem os seus próprios juízos racionais e práticos, dentro do campo de ação de cada um, ou encorajá-los ou mesmo obrigá-los a pensarem nos interesses de toda a sociedade? Sua resposta, com a qual concordam os liberais (de ontem, de hoje e de sempre) é que, no conjunto, os indivíduos são capazes de promover o bem e a prosperidade geral com maior solidez, continuidade e efetividade pelo primeiro método do que pelo segundo.

Isso decorre, em parte, do princípio católico da subsidiaridade, que se refere ao fato de que as pessoas diretamente envolvidas em qualquer atividade estão em posição melhor para realizar julgamentos mais precisos e, portanto, para realizar as melhores ações do que as que “não pegam na massa”. Os romanos condensavam este princípio na máxima do pintor Apeles (séc. 4 a.C.) — “ne sutor supra crepidam” (não suba o sapateiro acima das sandálias) — pronunciada a um sapateiro que, depois de olhar um de seus quadros e criticar a pintura das sandálias, se pôs a censurar outros pormenores. Uma atitude sem dúvida semelhante à do Estado, quando se propõe a criar riqueza e distribuí-la, tarefas que não lhe competem.

Eis, portanto, os ingredientes básicos do processo gerador de riqueza: um cenário individual compatível com a liberdade individual e bons atores, isto é, saudáveis e educados, isto é, donos de capital humano. O que falta para um bom espetáculo? Falta apenas uma boa história, um “script” competente. A diferença entre os liberais e os ditos “progressistas” é que os últimos, guiados pelo construtivismo racionalista, desejam que o Estado, direta ou indiretamente, se aposse do espetáculo, impondo a todos o cenário, o “script“, a rigorosa distribuição dos papéis e os preços dos ingressos referentes a uma peça cujos teor e resultados são pré-concebidos e impostos a todos. Já os liberais não creem em histórias pré-concebidas: o “script” é uma consequência imprevisível, baseado em performances individuais autônomas, tal como em um concerto de jazz, em que os músicos improvisam sobre um tema, respeitando sua harmonia e criando melodias e figuras rítmicas, e os agentes econômicos agem livremente, respeitando os acordes legais e institucionais e dando vazão à sua criatividade.

A evidência empírica vem dando suporte às teses liberais que sustentam que a ação livre, autônoma e espontânea dos agentes econômicos, em um pano de fundo institucional que lhes garanta liberdade e segurança física e jurídica, é muito mais adequada à formação e à distribuição natural da riqueza do que aquilo que Hayek chamou de “pretensão fatal”, em que algumas pessoas se consideram em condições de determinar “quanto se vai crescer”, “como se vai crescer”, “quem vai ganhar ou perder”, “quanto se vai ganhar ou perder” etc.

Voltando ao Brasil, com base nessas considerações e examinando-se as experiências de diversos países, algumas bem-sucedidas, outras fracassadas, o que pode ser feito para trilhar a estrada da riqueza, reduzir a pobreza, eliminar a miséria e, portanto, respeitar a dignidade de milhões de brasileiros? A resposta liberal é bastante clara: reduzir os poderes do governo, recolocando-o no seu devido lugar, nas suas autênticas tarefas, entre as quais se inclui a indução de investimentos em saúde pública, educação básica, justiça e segurança. Isso feito, os cidadãos brasileiros — e não os políticos e tecnocratas — é que poderão dizer não “o que devemos crescer” e sim “o que podemos crescer”, com base na iniciativa individual, exercida em clima de liberdade, responsabilidade e baixa incerteza.

Sempre que governos se arrogam o direito de comandar a economia, a pedra fatalmente termina descendo a montanha, impossibilitando a riqueza de florescer. Os exemplos são inúmeros. Onde quer que se tenha colocado o Estado acima do indivíduo, os resultados sempre foram um desfile de fracassos, e atualmente estamos vendo a confirmação disso na Venezuela e outros vizinhos da América do Sul que não aprenderam a lição.

Nos últimos quatro anos, desde que a nossa economia passou a ser orientada, depois de décadas de intervencionismos diversos, por uma visão liberal, até que Sísifo chegou bem perto do cume: nem a pandemia, nem a guerra na Ucrânia, nem as perturbações energéticas foram capazes de impedir sua subida, e parecia que a maldição estava com os dias contados.

Mas, infelizmente, em menos de duas semanas, o pedregulho já começou a cair e pode-se afirmar que, com a visão econômica do novo governo, vai continuar descendo. Medidas como a retirada de estatais do programa de privatizações, bem como a suspensão de toda e qualquer privatização; indicações de que se pretende realizar uma “desreforma” da previdência e uma contrarreforma trabalhista para garantir fundos para os sindicatos; articulações para pôr fim ao direito dos empregadores de demitirem sem justa causa; extinção da Secretaria de Desburocratização e da secretaria que acompanhava o ingresso do Brasil na OCDE; tentativa de reversão do marco do saneamento; indicações de que a ideia infeliz de criar uma moeda única para o Mercosul pode estar sendo levada a sério; sinalizações de que o BNDES e os bancos públicos voltarão a subsidiar “campeões” escolhidos e outras, todas no sentido de aumentar o poder e a interferência do Estado sobre as atividades econômicas.

A par disso, no plano macroeconômico, as notícias são também preocupantes: tendência a forte aumento de gastos correntes e da carga tributária, decorrentes da crença no Estado como promotor do crescimento; e ausência de compromisso com o controle da inflação. Em resumo, dois venenos simultâneos: (1) regime fiscal deficitário, que acarretará dívida pública ascendente e juros mais altos, e (2) regime monetário expansionista, a dizer, inflação.

Nos últimos quatro anos, desde que a nossa economia passou a ser orientada, depois de décadas de intervencionismos diversos, por uma visão liberal, até que Sísifo chegou bem perto do cume: nem a pandemia, nem a guerra na Ucrânia, nem as perturbações energéticas foram capazes de impedir sua subida, e parecia que a maldição estava com os dias contados

A economia pode ser encarada como um jogo de que participam três jogadores: a autoridade monetária (Banco Central), a autoridade fiscal (que determina receitas e despesas públicas) e o restante dos agentes econômicos, que a literatura denomina de “público”. Por outro lado, como se sabe, o governo pode financiar os seus gastos de três maneiras, não mutuamente excludentes: contrair dívida junto ao setor privado, aumentar tributos e expandir a oferta de moeda. Por fim, é preciso levar em conta o papel que as expectativas representam nas decisões do “público”: se, por alguma razão (como ocorre no momento), esperam-se preços mais altos no futuro, por que esperar isso acontecer, se cada agente achar que pode obter vantagens sobre os demais caso aumente o preço dos seus produtos agora?

Por isso, é importantíssimo olhar para o modo como se relacionam entre si as autoridades fiscais e monetárias. Há três tipos de relações.

Na primeira, o Banco Central não é independente e não existe expectativa de aumento de preços. Nesse caso, se o Banco Central adotar uma política de austeridade monetária, as autoridades fiscais terão de financiar o seu déficit tomando mais dívida, o que fatalmente jogará a taxa de juros para cima, e, mais cedo ou mais tarde, a autoridade monetária será forçada a sancionar a inflação. Portanto, neste primeiro caso, apertos na política monetária hoje podem implicar inflação no futuro.

Na segunda, o Banco Central também não é autônomo, mas há expectativas de que os preços vão subir. Nesse caso, o déficit fiscal terá de ser suprido também por mais dívida, isso também vai provocar aumentos na taxa de juros, mas, dada a influência das expectativas, os agentes econômicos anteciparão a inflação de preços, obrigando a autoridade monetária a sancioná-la já, pela emissão de moeda. Portanto, na presença de expectativas de inflação, apertos na política monetária agora podem significar inflação imediata.

Por fim, a terceira relação acontece quando o Banco Central é independente (como o nosso) e as autoridades fiscais continuam a gerar déficits substanciais, como tudo indica que virá a acontecer no Brasil. Nesse caso, a queda de braço entre política monetária austera e política fiscal festeira fatalmente vai desembocar em quebradeira generalizada: pelo lado monetário, o Banco Central terá de aumentar seguidamente e cada vez mais a taxa de juros, em razão de sua obstinação em não admitir inflação; e, pelo lado fiscal, o crescimento vertiginoso da alternativa solitária para financiar o déficit, ou seja, da dívida pública, implicará irremediavelmente aumento da taxa de juros. O resultado de tudo isso é que provavelmente a inflação não vai explodir, mas o Estado vai literalmente quebrar, arrastando com ele o setor produtivo, ou seja, empresas, empreendedores e trabalhadores.

Isso que você acabou de ler, por mais preocupações que acarrete, não tem absolutamente nada a ver com ideologia política, nem com essa ou aquela escola de pensamento econômico, nem com simpatias ou antipatias por esse ou aquele economista ou aquele outro político. É, simplesmente, aritmética básica, aquele velhíssimo conjunto de operações numéricas elementares, ensinado desde a nossa mais tenra infância por alguma “tia” abnegada e querida.

E o custo de se desafiar a aritmética, nesse caso, poderá ser extremamente elevado. Força, Sísifo!

 

Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor.

 

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